quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Uma nação Capitu

Os olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada da personagem de Machado de Assis são um patrimônio feminino brasileiro

Como seria interpretar, sobre um palco, a personagem Capitu, com seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada? É impossível, para uma atriz, dar conta totalmente da complexidade desse olhar tão poderosamente descrito por Machado de Assis em Dom Casmurro. Cada um de nós teria, certamente, o seu toque oblíquo, as suas olheiras de ressaca, a sua dissimulação, o seu fluido misterioso e energético. A minha intuição me faria interpretar Capitu com a absoluta crença de que esse olhar está, todo ele, subdividido no olhar da brasileira. Todas nós somos Capitu. Esse olhar nos pertence. E só a nós. É um patrimônio do feminino brasileiro.

Machado nos ensinou a vê-lo e o equacionou. Esse olhar é a nossa miscigenação, a nossa aparente submissão, são as nossas olheiras amorosamente gulosas, quentes e erotizadas. É o olhar que denuncia a marginal vitória desse ser-mulher colonizado. Olhar de quem dissimuladamente aceita o jogo surdo, silencioso, de carrasco e vítima, jogo fascinante e cruel na aparente aceitação das diversas manifestações do relacionamento humano. Essa luta dolorosa fascina Dom Casmurro porque ela é jogada no campo da dúvida.

Ao descrever Capitu, Machado esclarece: "Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca?" Nessas circunstâncias, o autor lança mão da imagem da cigana (presença marginal), do olhar de ressaca (visão de uma carne indomável) e do olhar oblíquo (não definido, não confiável, dissimulado).

Os olhos mostram o que desejamos ver por meio deles. É sempre também o reflexo, a projeção de quem olha. Esse perscrutar de olhares se apresenta desde o primeiro momento em que os hormônios começam a latejar. Não é só o menino que é o pai do homem. A menina também é a mãe da mulher. Os heróis de Dom Casmurro se conheceram na adolescência. Com mais luz ou menos luz, os olhos de uma menina de 14 anos já denunciam o olhar de toda uma vida.

Dom Casmurro é um tratado sobre o olhar. Capitu é emblemática. Bentinho descreve seu próprio olhar, olhando Capitu. Ouso falar sobre Capitu como atriz. Como se estivesse analisando um texto de dramaturgia, juntamente com um elenco, ao redor de uma mesa. Não estou aqui me arvorando em crítica literária. E como mulher de palco digo que, se eu tivesse tido na minha vida a oportunidade de tentar interpretar Capitu, partiria do ponto de vista de sua clara, profunda e inconfundível brasilidade.

Não estou circunscrevendo Capitu a nossa aldeia. Ela é universal como literatura e como perfil de mulher. Indo além do que já ousei e me arrisquei nestes parágrafos, intuo que, embora o Brasil seja nome masculino, nosso país, por nossa complexidade oblíqua, energética, misteriosa, pela nossa História contada sempre de uma forma tão dissimulada e pelo fascínio tão decantado de nossos trópicos, é, no fundo, uma nação Capitu.



Por Fernanda Montenegro

Artigo publicado na revista Época 500 anos, edição especial, em 17 de abril de 2000.

Um comentário:

Anônimo disse...

Brilhante. Parabéns, tú descreveu o olhar oblíquo de Capitolina com louvor.